Já tinha ficado claro pra mim que
não ia conseguir, por agora, ir até a capela/túmulo da Santa Maria da Liberdade,
rio Envira acima. O problema é que, sem sair da cidade, ia ser difícil falar
com o povo da beira do rio, incluindo os índios. Mas, pra minha surpresa,
versões indígenas apareceram nos comentários das postagens que eu já estava
fazendo.
R... contou que viu “Uma linda
imagem dela, grande, pintada num altar na Terra Indígena Kaxinauá do Rio
Humaitá, lá longe. Desde então passei a ter devoção por ela. Até porque a
liberdade é um dos dons que a Virgem Maria nos dá. E me senti valida por Ela!”
Já P..., mesmo longe do
Brasil, não sossegou enquanto não me mandou suas anotações sobre a
capela/túmulo do Liberdade. “Um Shanenawa
e um Kulina me contaram que ela tinha 9 anos quando o irmão a matou. Ela se
tornou santa porque sumiu do túmulo. A mãe, e outras pessoas, viram ela próxima
de uma árvore que tem lá na capela. Aí, foram revirar o túmulo, mas ela não
estava mais lá. Por isso eles pegam a terra que tem no túmulo e acreditam que
seja milagrosa.”
Essa ultima versão era a mais
diferente de todas até aqui. Nela, Maria era apenas uma menina, o corpo sumiu transmutado
em espirito e, assim, não pode ter sido levado pra Roma. Fiquei imaginando
quantas outras versões devem ser contadas no Alto Envira. Em compensação, logo encontrei
pessoas que moraram lá perto do Liberdade, décadas atrás, e as versões ficaram
ainda mais quentes.
Dona F., nascida em
1931, morou no Envira e lá... “Conheci o
irmão da Maria, que matou ela, conheci... Ele morava com uma cumadre minha,
filha dele. Eu morava no Santa Rosa e ele no Santo Antônio, abaixo do Liberdade.
Mas, ele não queria que triscasse no nome dela.
O
que me contaram foi que ela era moça e já tava namorando. A mãe dela tinha ido
pro igarapé lavar roupa. Maria estava em casa arrumando a mala, enrolando uma
fita na mão pra guardar. Ai o irmão subiu no ‘sóti’ e lá de cima disse: Maria você vai casar com fulano? Ai ela
disse: Vou... num sei. Acho q vou...Vou!
Ai, ele atirou lá de cima com a besta (armadilha de caça) e acertou bem no peito dela. A mãe, quando
ouviu o tiro, veio correndo e ainda alcançou ela viva... Foi quando Maria disse
que não queria vingança... e morreu. Isso ai é verdade!
Depois
os padres pegaram o corpo dela. O padre ‘Flito’ levou. Ninguém sabe se levou pra
Roma, sabe que levaram...”
No domingo de manhã, na Igreja da
Maria da Liberdade, em Feijó, conheci uma pessoa muito especial: Seu M.,
rezador respeitado nos rios e na cidade, nasceu em 1927, no Seringal Califórnia,
vizinho ao Liberdade, e estava fazendo 90 anos nesse mesmo dia, 15 de janeiro,
com uma memória absurdamente clara. Apesar do aniversário ser dele, quem ganhou
um grande presente fui eu.
“Conheci o Sr. Luís Romualdo que
conheceu a santa, conheceu a mãe, o pai e o noivo dela. Ele me contou que o
juiz de paz Chico Maciel vinha subindo o rio pra fazer o casamento de Maria com
o dono do seringal Liberdade, um tal de Parintins. O pessoal já estava soltando
foguetes na chegada do juiz. Maria estava em casa, sentada na cabeceira da
mesa. E tinha um irmão, por nome Dico, que falou pra ela: Maria, tu não casa com fulano! Ai ela perguntou: Porque mano? E ele: Porque eu te mato! Ai ele pegou o rifle
que todos eram acostumados a bater catolé (atirar sem
munição) uns com os outros, brincando, há
quantos anos. Mas, quando apertou o dedo. Teeeei!! No peito dela. Ai, Maria
tombou por ali, mas aguentou, se escorou na mesa e deu aquele desmaio.
Ai
prenderam ele. Mas, ela pediu pelo amor de Deus, que não fizesse nada com ele e
ai soltaram. Acontece que ela ficou com o coração humilde, friiinho, de paz,
amor e caridade. O povo ficou tudo neutro, ninguém ficou contra. Mas, diz que o
Dico passou uma porção de tempo assim, meio desorientado dos sentidos. Acho que
o pai dela já tinha morrido, mas a mãe estava lá e diz que Maria contou um
segredo pra ela, mas não era pra contar pra ninguém. E a mãe dela nunca contou
mesmo, levou com ela.
Antes
disso, todo assunto que Maria tinha, era um assunto assim... diferente de
pessoalmente, do nosso natural, entende?. E ela sempre tinha um gesto
diferente. Tudo dela já era com aquela diferença. Tudo... Já se comportando
assim como no caminho da salvação. E, até hoje, ela faz milagres com o poder de
Deus.
Tinha
uns homens de verdade no Envira (cita o nome deles e de seus
seringais). Todos eles contavam uma
historia só: aconteceu por uma brincadeira...
Ai
fizeram o sepulcro dela. E o povo começou a fazer promessa. Ela era bem
acontecida. A história foi espalhando. Ai, na era de 30, chegou um padre lá em
Califórnia. Ele foi no túmulo e tirou ela. Fizeram aquela caixa e colocaram o
corpo santo. O corpo tava inteirinho, inteirinho, inteirinho, não faltava
ninguém. Os vestes dela tudo perfeitinho. Fita que enfeitaram ela, assim
arroxeadinha, tava do mesmo jeitinho, novinha, novinha, novinha, não pegou sujo
nenhum. Só pra quem ele abriu foi pra Dona Inês. Ele abriu uma coisinha pra ela
ver, ai fechou. Foi deixar em Roma. Era um capuchinho, já velhinho, italiano. Mas,
não resistiu à volta, morreu em meio de viagem. Chamava Padre José Fliutes e
foi quem me batizou. Mas, o povo continuou se valendo da alma dela, da Santa.”
A essa altura do
campeonato eu já tinha reunido mais de vinte diferentes versões. Ficou claro,
então, que as diversas versões da morte de Maria da Liberdade também são uma maneira
de retratar as violências que sempre foram impostas às Marias dos seringais: abusos,
casamentos forçados, acidentes familiares, estupro, assassinato, dramas e tragédias
seculares que perduram até hoje. Apenas mais uma Maria que deveria ter sido
esquecida, como tantas e tantas outras, não tivesse ela se tornado uma alma milagrosa,
uma Santa a valer todas as Marias desde então.
Mas, nesse ponto, comecei
a perceber também que muitas dessas diferentes versões eram, na verdade, partes
de uma mesma história. Só me faltava juntar os pedaços...
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