sábado, 28 de janeiro de 2017

Muitas Marias, uma Santa e a tal Liberdade... IV


Já tinha ficado claro pra mim que não ia conseguir, por agora, ir até a capela/túmulo da Santa Maria da Liberdade, rio Envira acima. O problema é que, sem sair da cidade, ia ser difícil falar com o povo da beira do rio, incluindo os índios. Mas, pra minha surpresa, versões indígenas apareceram nos comentários das postagens que eu já estava fazendo. 


R... contou que viu “Uma linda imagem dela, grande, pintada num altar na Terra Indígena Kaxinauá do Rio Humaitá, lá longe. Desde então passei a ter devoção por ela. Até porque a liberdade é um dos dons que a Virgem Maria nos dá. E me senti valida por Ela!”
Já P..., mesmo longe do Brasil, não sossegou enquanto não me mandou suas anotações sobre a capela/túmulo do Liberdade. “Um Shanenawa e um Kulina me contaram que ela tinha 9 anos quando o irmão a matou. Ela se tornou santa porque sumiu do túmulo. A mãe, e outras pessoas, viram ela próxima de uma árvore que tem lá na capela. Aí, foram revirar o túmulo, mas ela não estava mais lá. Por isso eles pegam a terra que tem no túmulo e acreditam que seja milagrosa.”
Essa ultima versão era a mais diferente de todas até aqui. Nela, Maria era apenas uma menina, o corpo sumiu transmutado em espirito e, assim, não pode ter sido levado pra Roma. Fiquei imaginando quantas outras versões devem ser contadas no Alto Envira. Em compensação, logo encontrei pessoas que moraram lá perto do Liberdade, décadas atrás, e as versões ficaram ainda mais quentes.
Dona F., nascida em 1931, morou no Envira e lá... “Conheci o irmão da Maria, que matou ela, conheci... Ele morava com uma cumadre minha, filha dele. Eu morava no Santa Rosa e ele no Santo Antônio, abaixo do Liberdade. Mas, ele não queria que triscasse no nome dela.
O que me contaram foi que ela era moça e já tava namorando. A mãe dela tinha ido pro igarapé lavar roupa. Maria estava em casa arrumando a mala, enrolando uma fita na mão pra guardar. Ai o irmão subiu no ‘sóti’ e lá de cima disse: Maria você vai casar com fulano? Ai ela disse: Vou... num sei. Acho q vou...Vou! Ai, ele atirou lá de cima com a besta (armadilha de caça) e acertou bem no peito dela. A mãe, quando ouviu o tiro, veio correndo e ainda alcançou ela viva... Foi quando Maria disse que não queria vingança... e morreu. Isso ai é verdade!
Depois os padres pegaram o corpo dela. O padre ‘Flito’ levou. Ninguém sabe se levou pra Roma, sabe que levaram...”


No domingo de manhã, na Igreja da Maria da Liberdade, em Feijó, conheci uma pessoa muito especial: Seu M., rezador respeitado nos rios e na cidade, nasceu em 1927, no Seringal Califórnia, vizinho ao Liberdade, e estava fazendo 90 anos nesse mesmo dia, 15 de janeiro, com uma memória absurdamente clara. Apesar do aniversário ser dele, quem ganhou um grande presente fui eu.
Conheci o Sr. Luís Romualdo que conheceu a santa, conheceu a mãe, o pai e o noivo dela. Ele me contou que o juiz de paz Chico Maciel vinha subindo o rio pra fazer o casamento de Maria com o dono do seringal Liberdade, um tal de Parintins. O pessoal já estava soltando foguetes na chegada do juiz. Maria estava em casa, sentada na cabeceira da mesa. E tinha um irmão, por nome Dico, que falou pra ela: Maria, tu não casa com fulano! Ai ela perguntou: Porque mano? E ele: Porque eu te mato! Ai ele pegou o rifle que todos eram acostumados a bater catolé (atirar sem munição) uns com os outros, brincando, há quantos anos. Mas, quando apertou o dedo. Teeeei!! No peito dela. Ai, Maria tombou por ali, mas aguentou, se escorou na mesa e deu aquele desmaio.
Ai prenderam ele. Mas, ela pediu pelo amor de Deus, que não fizesse nada com ele e ai soltaram. Acontece que ela ficou com o coração humilde, friiinho, de paz, amor e caridade. O povo ficou tudo neutro, ninguém ficou contra. Mas, diz que o Dico passou uma porção de tempo assim, meio desorientado dos sentidos. Acho que o pai dela já tinha morrido, mas a mãe estava lá e diz que Maria contou um segredo pra ela, mas não era pra contar pra ninguém. E a mãe dela nunca contou mesmo, levou com ela.
Antes disso, todo assunto que Maria tinha, era um assunto assim... diferente de pessoalmente, do nosso natural, entende?. E ela sempre tinha um gesto diferente. Tudo dela já era com aquela diferença. Tudo... Já se comportando assim como no caminho da salvação. E, até hoje, ela faz milagres com o poder de Deus.
Tinha uns homens de verdade no Envira (cita o nome deles e de seus seringais). Todos eles contavam uma historia só: aconteceu por uma brincadeira...
Ai fizeram o sepulcro dela. E o povo começou a fazer promessa. Ela era bem acontecida. A história foi espalhando. Ai, na era de 30, chegou um padre lá em Califórnia. Ele foi no túmulo e tirou ela. Fizeram aquela caixa e colocaram o corpo santo. O corpo tava inteirinho, inteirinho, inteirinho, não faltava ninguém. Os vestes dela tudo perfeitinho. Fita que enfeitaram ela, assim arroxeadinha, tava do mesmo jeitinho, novinha, novinha, novinha, não pegou sujo nenhum. Só pra quem ele abriu foi pra Dona Inês. Ele abriu uma coisinha pra ela ver, ai fechou. Foi deixar em Roma. Era um capuchinho, já velhinho, italiano. Mas, não resistiu à volta, morreu em meio de viagem. Chamava Padre José Fliutes e foi quem me batizou. Mas, o povo continuou se valendo da alma dela, da Santa.”
A essa altura do campeonato eu já tinha reunido mais de vinte diferentes versões. Ficou claro, então, que as diversas versões da morte de Maria da Liberdade também são uma maneira de retratar as violências que sempre foram impostas às Marias dos seringais: abusos, casamentos forçados, acidentes familiares, estupro, assassinato, dramas e tragédias seculares que perduram até hoje. Apenas mais uma Maria que deveria ter sido esquecida, como tantas e tantas outras, não tivesse ela se tornado uma alma milagrosa, uma Santa a valer todas as Marias desde então.
Mas, nesse ponto, comecei a perceber também que muitas dessas diferentes versões eram, na verdade, partes de uma mesma história. Só me faltava juntar os pedaços...

sábado, 21 de janeiro de 2017

Santa Maria da Liberdade III... Quantas mortes Maria?


O único lugar onde eu tinha esperança de encontrar algum tipo de registro sobre a história da Maria do Liberdade era a igreja católica. Por isso, em Feijó, tratei de ir direto pra Igreja Matriz da cidade, consagrada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E a primeira pessoa que encontrei, ainda no pátio externo, foi a Dona R., que não me contou nenhuma história da morte de Maria, mas, sem muito arrodeio, disse que...
Minha avó viajou no mesmo navio em que os ossos da Maria foram pra Roma. A urna onde ela estava ia escoltada por dois soldados, um de cada lado. Minha vó disse que ninguém podia nem chegar perto. Isso ela me contou e é verdade!” 
Em seguida, sem aviso, Dona R. me disse o nome do irmão de Maria. Nome e sobrenome! Tomei um susto, eu juro. Não tinha me ocorrido, ainda, perguntar o nome dele. Muito menos tentar procurar por ele pra achar a Maria. Só então percebi que, por mais óbvio que pareça, ele continuou vivo e, talvez, tivesse tido filhos e netos que poderiam ajudar a conhecer essa história. Quem sabe.
O problema é que comecei a ouvir novas versões sobre a morte de Maria. Só que elas trouxeram mais dúvidas do que respostas, sobre o que teria acontecido entre ela, seu irmão e os outros personagens que continuavam a surgir...
Dona S. disse que “Tinha 7 ou 8 anos e, como toda criança, gostava de ouvir a conversa dos adultos. E uma senhora, Dona Olívia, amiga da minha avó, era costureira e mulher de um antigo regatão e contava muitas histórias dos rios e seringais que conheceu.
Um dia, ouvi ela contando essa história, que era proibida pra mim. Mas, consegui escutar e nunca mais saiu da minha cabeça. Ela contou que foi mesmo o irmão o culpado da morte da Maria. Ele gostava dela e ‘ficou’ com ela. Então, ela se desesperou e se matou.”
Ouvir essa versão, confesso, foi como um soco no estômago. Eu tava estranhando que algo assim ainda não tivesse surgido. Ao mesmo tempo, torcia pra que não surgisse... Às vezes, é difícil não se envolver com as histórias que se contam.
No dia seguinte, Seu F. me contou que “A história que eu conheço é que um cara tentou estuprar ela, mas não conseguiu! Dai matou ela. Mesmo morta, ela ficou dum jeito que, ele ainda tentou estuprar depois de morta, não conseguiu! Dai o irmão dela, chegou e viu o que o cara tinha feito, foi, e matou ele.
Depois ela foi enterrada e começaram a rezar por ela e a receber milagres. Ai vieram aqui na cidade e chamaram o padre. O padre, com mais ou menos um mês depois dela morta, desenterrou e ela tava do mesmo jeito que tinha sido enterrada, perfeita. Ai trouxeram pra cidade. Veio gente de Roma pra cá, uns Bispos, uns Cardeais, dai levaram ela pra Roma. Ou, não sei se foi pra Roma, só sei que tiraram daqui de Feijó. Eles dormiram lá no seringal Japão, onde minha vó morava. Minha vó pediu um pedaço da fita que estava enrolada nela. E minha vó era bem conhecida por lá, por isso, cortaram um pedaço da fita e deram pra ela.”
Mas Dona N., buscando em lugares longínquos de sua memória de 85 anos, tornou a levar a história noutro rumo quando me assegurou que “A Santa Maria da Liberdade foi o irmão que matou. Ele tava trepado lá em cima do ‘sóti’ (traduzindo: no sotão da casa), a espingarda disparou e pegou nela. Antes de morrer ela falou que quando alguém tivesse problema, precisasse de ajuda, era só pedir, pra que se valesse dela. Acho que ela tinha 13 anos quando morreu. Meu pai ia todos os anos pro Liberdade. Meu sogro, que tirava caucho lá no alto Envira, foi que conheceu ela ainda viva.”
No mercado da cidade, Dona H. que, eu e meu guia, encontramos por acaso, disse que “Ouviu dizer... que o irmão dela era muito afobado e pediu pra Maria engomar uma roupa, porque ele ia pra uma festa. Ai, ela falou que não ia engomar roupa nenhuma! Assim mesmo ela foi.
Quando ela se abaixou no baú, ele pegou e deu um tiro nela. Atirou nela! Ai, assim: de cada um desses chumbos que pegou nela, virou... estrelas...
Mas, ninguém sabe, né? Tem muitas histórias...”
 

E, numa demonstração cabal que, por mais estranha que, às vezes, possa parecer nossa compreensão da realidade, sempre se pode torná-la ainda mais extraordinária, Seu S. me garantiu que “Maria arranjou um namorado e seu irmão não aceitou. Um dia o cabra foi atrás de falar com a Maria e o irmão botou pra cima dele pra matar, mas não conseguiu. O cabra escapou. Ai, o irmão matou ela... Ela era muito novinha quando aconteceu...”
A essa altura do campeonato, minha cabeça dava voltas. Porque, paralelamente a essa multiplicidade de versões: eu tentava calcular a data, ou a década ao menos, que isso tudo aconteceu, mas sem achar; buscava nos livros de batismos das desobrigas que foram feitas pelos padres, dos anos 20 pra cá - graças à boa vontade dos responsáveis - registros de Maria ou de sua família no alto Envira; tentava pôr em ordem a construção da capela/túmulo no Liberdade e da igreja na cidade de Feijó e suas respectivas comunidades; procurava encontrar a filha do irmão de Maria, que diziam ainda estar por lá... Enfim...
Um turbilhão de coisas e possibilidades que nem estou contando aqui, pra que esses artigos possam ser lidos nestes tempos de twitter, face e textos mínimos... Mas, foi uma alagação de informações tão intensa que, naquele momento, vertiginoso, deu pau no meu HD. Travei. De verdade. Não conseguia mais lembrar quem tinha me contado o que... Tudo virou uma coisa só, indistinta, como fosse uma sopa de histórias passada no liquidificador. E, ainda por cima, quente, fervente.
Ai ai... Ainda bem que gravei umas coisas, filmei outras e anotei o q pude... Senão, não teria sequer, uma história pra contar. Mas, como disse nas postagens que fiz, lá de Feijó, semana passada: essa é, sem duvida, a história mais louca de tantas quantas histórias já encontrei... na vida.
E ai? É pra continuar a contar??? Ou já deu?

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Santa Maria da Liberdade II... As muitas mortes de Maria...

Pouco depois de ouvir a história de Maria da Liberdade, fiz o que todo mundo faz hoje em dia: uma busca no Google. E, surpreendentemente, a internet, que tudo sabe e tudo vê, só tinha duas matérias do Site Cultural de Feijó, do Prof. Evilásio Cosmiro. E um vídeo de fotos, feito e postado no Youtube, por uma família que subiu o rio Envira até a capela que guarda o túmulo da Santa Maria da Liberdade. Ou seja, para os padrões da internet com que estamos acostumados, quase nada.
Mas, um pequeno texto repetido nas duas matérias do site de Feijó abriu diante de mim um mar de contradições. Muito maior e profundo do que eu podia imaginar.
“(...) Maria da Liberdade, foi uma boa jovem, que sempre morou com sua família em um seringal situado às margens do rio Envira. Aos quinze anos, foi assassinada por seu irmão, por não aceitar casar-se com certo homem, antes de morrer Maria da Liberdade, perdoou o mesmo.”
Como assim? Na primeira história Maria já tinha 20 anos, aqui 15. O irmão, que era seu protetor, agora é seu assassino. E o motivo foi ela se recusar a casar com “certo homem”. O que mostra uma postura autoritária do irmão de Maria, ao invés da cumplicidade revelada pela primeira história. Mas, mesmo assim, antes de morrer, Maria perdoou seu irmão. O que, talvez, fosse uma justificativa para sua posterior santificação.
Em seguida, o mesmo texto conta que "(...) no seringal, foi construído uma Capela (...) e em seu interior fica somente a sepultura da Maria Liberdade, pois seu corpo foi levado para Roma pelo Monsenhor.”
Mais uma vez, tudo ao contrário. Na primeira versão o corpo misteriosamente volta pro Seringal Liberdade e lá permanece. Nesta segunda, o corpo de Maria foi retirado da sepultura, já transformado em Capela e lugar de devoção, e levado para ROMA!!! Pelo Monsenhor??? Que monsenhor? Como um corpo é tirado daqui do Acre e levado pra Roma sem termos nenhuma noticia em canto algum?
Bueno... Independente do que quer que tenha levado Maria à morte, a devoção à Santa Maria da Liberdade cresceu com força e velocidade surpreendentes. Como parece ter acontecido também com o São João do Guarani, em Xapuri; a Santa Raimunda do Bonsucesso, em Assis Brasil; a Profª. Rosalina, em Rio Branco; o irmão José da Cruz, no Juruá; e muitos outros santos e profetas espalhados por quase todos os rios e povoados e cidades desse Acre de espiritualidade tão especial e intensa.

 Capela de Santa Maria da Liberdade, fonte: Site Cultural de Feijó

A capela de Santa Maria da Liberdade passou a ser um lugar de peregrinação pra todo o povo do rio Envira, Jurupari, Tarauacá, Muru e até do Juruá, dizem. As promessas e as histórias de graças alcançadas se espalham e são atestadas com grande firmeza e fé pelos que são “validos”, como diz o povo, pela menina Maria tornada Santa em seu martírio. E, a partir desse ponto, todos os relatos convergem na mesma direção, apesar de outras tantas contradições específicas, em relação ao grande poder da santa do alto Envira.
Ou seja, a essa altura me pareceu que a história que precisava ser pesquisada e conhecida era a da Maria, ponto de partida da história da Santa. A história de vida daquela pessoa com nome e sobrenome que viveu no seringal Liberdade, até que uma morte brutal a tornou santa aos olhos de todos. Especialmente, porque as duas versões que eu tinha sobre ela e as circunstâncias da sua morte, até então, eram completamente opostas e antagônicas.
Por coincidência, há alguns dias atrás, surgiu a oportunidade de ir a Feijó e, talvez, subir o rio Envira até o túmulo/capela do Liberdade. Claro que nem pensei duas vezes... fui.
Mas, antes mesmo de chegar a Feijó, uma rápida subida no rio Jurupari, me levou ao Parque das Ciganas, uma comunidade muito bonita, de vida farta e tranquila, em um rio que eu ainda não conhecia. E, lá, o patriarca da comunidade, Seu A.* me contou uma nova versão da história da “Maria do Liberdade”.
Segundo ele: “Meu pai trabalhou lá no Envira, no seringal Liberdade. Ele e minha mãe contavam que foi o irmão que matou a irmã. Mas não foi porque quis. Ele brincava muito. Gostava muito dela e gostava de brincar. Ai foi e disse que ia matar ela. Mas, não pensou que tinha cartucho. Na mente dele, tinha tirado o cartucho da espingarda. Ai foi, brincando por lá, detonou a espingarda e matou, acertou ela. Não foi porque ele quis. Ele desesperou-se muito.
Ai ela foi sepultada e, com pouco tempo, o papai contava que as pessoas passavam na cova dela e tava aquele cheiro! Um perfume que parecia que tinha aberto um vidro de perfume naquele instante. A notícia correu e os padres foram lá e fizeram a capela. E ela é conhecida, desde aquela época, como Santa Maria da Liberdade. Meu pai disse que os padres levaram o corpo dela. Mas o poder ficou lá. O poder de Deus ficou lá onde ela foi sepultada.”
Pra minha surpresa... Era a terceira versão diferente com que eu me deparava. Mas, uma hora, os depoimentos teriam que começar a se repetir. E, provavelmente, essa versão mais repetida deveria ser a de maior veracidade e capaz de orientar a busca por documentação sobre o caso. Pelo menos era o que eu esperava...
Mal podia imaginar, ainda, o que ia encontrar em Feijó...
* A partir desse ponto não vou identificar mais as pessoas que me deram depoimentos e informações, até que elas leiam esses artigos que estou publicando e autorizem a citação de seus nomes.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Santa Maria da Liberdade... O princípio...


Certo dia, essa história me alcançou e não consegui mais esquecer. Desde então busco uma narrativa que parece não existir, tantas são...


No alto rio Envira, já chegando nas ultimas casas dos cariús, perto de onde começa o território dos índios brabos, fica o Seringal Liberdade. E dizem que foi nesse seringal em que viveram Maria e seu irmão.
Mesmo depois que os pais de Maria foram mortos pelos índios, os dois irmãos decidiram ficar por ali. Não tinham pra onde ir, talvez. Ou, quem sabe, não pudessem sair por divida com o patrão. Ou, então, não quiseram sair do lugar onde nasceram e se criaram, que era tudo que conheciam do mundo. Não sei.
O certo é que por lá ficaram, tocando a vida, como sempre.
Maria era uma moça bonita, esperta e dava conta de todo o serviço de casa e do terreiro. Já estava chegando aos vinte anos, mas não queria saber de casar. O que naqueles tempos de barrancos e seringais era um absurdo. Por aqui as meninas se casavam, no mais tardar, aos 14, 15 anos. Quando não, muito antes. Mas Maria tava bem assim e pronto.
Um dia o irmão lhe avisou que precisava ir na margem resolver umas contas no barracão e lhe chamou pra ir. Mas Maria quis não. Tava acostumada a ficar só em casa, porque o irmão passava a maior parte do tempo na mata mesmo. E não ia ser a primeira vez que ela ficava na colocação enquanto ele ia até a margem. Eram só três dias, ida e volta. Tava decidido. Ia ficar.
O irmão foi, fez tudo que tinha pra fazer na sede do seringal o mais rápido possível e voltou pra casa. Assim que entrou no aceiro da mata já foi chamando por Maria, mas tava tudo quieto. Entrou em casa e não tinha nada diferente, tudo nos seus cantos. Nada da Maria. Chamou, chamou, e só ouviu o latido do cachorro lá fora, pros rumos do igarapé onde Maria costumava pegar água e lavar a roupa. E foi pra lá.
Na beira do igarapé viu o cachorro latindo sem parar e cavando na beira d’água. O rapaz desconfiou do jeito do cachorro latir e começou a cavar no mesmo lugar. Foi quando encontrou Maria. Ela tinha sido estuprada e estrangulada pelos índios. Talvez os mesmos que mataram seus pais.
Ele ficou desesperado, sem saber o que fazer. Mas a raiva lhe restituiu a ação e o fez chamar os vizinhos. Enterraram Maria perto do Igarapé mesmo e foram atrás dos índios que tinham cometido aquela barbaridade. E mataram um monte deles nos dias seguintes.
O problema é que, desde esse dia, o irmão de Maria nunca mais teve paz. Se ele entrava na mata sentia uma presença que não conseguia ver. Às vezes ouvia lhe chamarem pelo nome e quando olhava não tinha ninguém. E o pior é que a voz parecia a da Maria. Logo ele começou a sonhar com a irmã quase toda noite.
Em seus sonhos Maria aparecia bonita como sempre, sem nenhum machucado. Mas seu rosto tinha um sofrimento, uma agonia, que não era comum nela. Até que num desses sonhos Maria falou com ele:
- Meu irmão me tire dali de onde você me enterrou. Eu to quase dentro da agua. Não quero ficar ali não. Nem se preocupe porque eu to inteirinha, a terra não me comeu. A terra só conseguiu roer um pouquinho a ponta do meu nariz por causa daquela mania que eu tinha de cheirar tudo que eu pegava. Você lembra que brigava comigo que só por conta disso? Pois é. Fora a ponta do meu nariz eu tô perfeita, pode me tirar e me colocar num lugar melhor.
Mas ele não tinha coragem de atender o pedido dela. Até porque já fazia quase um ano que Maria tinha morrido, devia estar só os ossos. Viajou, então, até a cidade pra pedir ajuda ao padre. Decidiram trazer o corpo de Maria pra cidade. Com certeza, enterrada num campo santo, a alma de Maria havia de encontrar descanso. E assim fizeram.
Mas, quando desenterraram Maria, ela estava inteirinha mesmo. Como tinha dito no sonho: só a ponta do nariz machucada... No mais, tinha o semblante tranquilo, parecia estar dormindo.
Na cidade fizeram um velório breve, onde todos se surpreenderam com o corpo intacto de Maria. E, logo, trataram de enterrá-la, como se deve, no cemitério. Mas, assim que nasceu o dia, alguém deu conta de que o túmulo da Maria tava aberto e que o corpo tinha sumido. Depois de muito procurar, o irmão dela se deu por vencido e, pensando que alguém, por algum motivo que desconhecia, havia roubado o corpo de Maria, decidiu voltar pra casa.
Nem bem chegou, foi até o igarapé se lavar e se deparou com o corpo de Maria num lugar mais alto, próximo do rio. Mais uma vez ele teve que enterrar a irmã, enquanto rezava que ela finalmente encontrasse a paz, no mesmo lugar em que achou o corpo. E não demorou nada para que começassem a surgir as primeiras histórias de milagres e graças concedidas por Maria àqueles que lhe pediam ajuda e faziam promessas.
Num inverno muito forte o rio encheu tanto que o igarapé onde Maria morreu que chegou a mudar de curso e e suas águas passaram por cima do túmulo dela. Quando as águas baixaram, viu que tinham se formado pedras bem por cima do túmulo e o povo do lugar decidiu fazer uma capela pra ela. Bem ali, naquele mesmo lugar.
Desde então, todos os anos, muitas pessoas são validas pela Maria da Liberdade e vão até sua capela, há cinco dias de barco de Feijó, pagar promessas, deixar pernas, braços e cabeças feitas de madeira, ou apenas pra rezar e acender uma libra de velas pra Santa Maria da Liberdade.
Se foi assim que tudo aconteceu, não sei. Eu mesmo só sei que, muitos anos depois, uma mulher descia o rio Tarauacá numa grande agonia. Ela não conseguia parir e a dor a estava consumindo. Não ia dar tempo de chegar à cidade, ou a mulher paria logo ou ia morrer. Pararam num vilarejo em meio de caminho e, antes de a carregarem barranco acima, ela prometeu à Santa Maria da Liberdade que se à ajudasse a parir e fosse uma menina saudável ia receber o nome dela. Naquela mesma noite, nasceu uma menina batizada Maria da Liberdade e que, há uns três meses atrás, já mulher feita, me contou essa história. 

Obs: Depois dessa primeira narrativa da história de Maria, ouvi muitas outras versões. Em Feijó, parece que cada um conhece uma história diferente. Histórias opostas, inconciliáveis entre si... Querem ver? Vou contar...