quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O longo caminho



Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás 
vê-se a senda que jamais 
se há-de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.
Antônio Machado

O Acre é um lugar estranho, uma fronteira milenar e ativa. Lugar do divisor das três grandes aguas que desenham mundos completos.  Lugar do encontro de uma multidão de povos. Lugar da guerra sem fim entre os diferentes. Floresta rica e livre para os muitos que aqui acharam seu lugar no mundo pra sempre. Lugar da transposição do que foi, para o que será. O Acre é, e sempre foi... uma fronteira.
Daqui partem muitos caminhos longos e antigos. Muitos deles já esquecidos, outros ainda vivos. Talvez por isso o Acre tenha esse estranho destino de ser início de tantas histórias. Talvez...
*   *   *
Certa vez sonhei, ou mirei, já nem sei, que seguia um longo caminho rio acima. E, depois de muito caminhar pela floresta mais cerrada que se possa enfrentar, cheguei ao pé da grande montaña. Logo na margem do primeiro rio estreito que corria ligeiro pelas quebradas de pedras havia uma ponte que, eu sabia, precisaria atravessar. Só assim poderia seguir pela floresta de montaña acima, até alcançar os Apus e cumes nevados do Sol para reencontrar, finalmente, o espírito do tempo, a eternidade, talvez.
Pra minha felicidade, me esperava do lado de cá, no início da ponte, uma pessoa muito importante em minha vida. Célia, minha guia até a floresta, quem me trouxe pra cá, pro Aquiri. Ela estava linda, com seu jeito tranquilo de sempre. Pude olhar com calma e vi como ela era a perfeita e harmoniosa mistura das índias daqui, com os andinos de lá e os nordestinos de acolá. Entendi, na mesma hora, que ela seria minha guia ainda uma vez e me ensinaria o que ainda falta conhecer pra atravessar a ponte... um dia...
Nunca consegui esquecer esse sonho... Foi a primeira vez que percebi que por aqui passava um caminho muito longo... e antigo.
*   *   *
Amélia foi minha aluna na Ufac. Pense numa pessoa tranquila, serena, sempre sorridente. Foi um tempo bom. Conheci uma meninada muito legal, que hoje tá por aqui ou por ali construindo suas vidas. O ambiente da universidade pode ser altamente estimulante e criativo com toda jovem energia que os alunos levam pra lá a cada ano.
E, desde então, como amigos antigos já, reencontrei com Amélia muitas vezes. Até porque, além de irmã de meu grande e talentoso amigo Maqueson, ela integrava a União do Vegetal. E foi graças à União que tomei o Vegetal pela primeira vez e, com todos eles, sempre me senti entre irmãos.
Mais tarde trabalhei junto com Amélia e muitos outros na construção da Câmara Temática das Culturas Ayahuasqueiras em muitas, muitas, reuniões, fóruns, conferências e seminários. Ela estava sempre por lá. Constante, tranquila e sincera em suas opiniões e na convivência entre os diferentes.
Engraçado como, na vida, existem pessoas que conhecemos e nunca mais vemos outra vez. Como existem aquelas pessoas que sempre cruzam com a gente, com quem encontramos sempre, por um ou outro motivo, e é sempre uma enorme satisfação encontrar novamente. Pra mim, sempre foi assim com Amélia!
Como disse o poeta lá em cima: “Caminhante não há caminho, faz-se o caminho ao andar.” Uma honra andar junto contigo Amélia, ao menos, em parte desse longo caminho...
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Mestre Edson Lodi, você sabe que considero um privilégio desfrutar de sua sincera amizade. Por isso, nos últimos dias meu coração andou sangrando uma gota apenas do caudaloso rio de dor que o senhor tem sangrado nesse momento tão difícil de perda de Antônia, sua companheira de vida. Como também estão sofrendo os familiares do Murad.
Mas sei que, graças a Deus, a União do Vegetal se tornou o que é - a maior doutrina espiritual da ayahuasca no mundo - por ser fiel guardiã de orientações morais e conhecimentos espirituais que, certamente, lhes ajudarão a entender o sentido oculto pr’além dos destinos e da brevidade da existência de cada um de nós. Rogo que toda dor de vocês possa encontrar consolo e arrefecimento na Luz e Paz que lhes foi legada por Mestre Gabriel.
*   *   *
Alguns dias atrás, apenas, encontrei mais uma vez Amélia. Ela estava correndo apressada pra uma das palestras da Conferencia da Ayahuasca. Mesmo assim, Amélia parou pra falar comigo, como sempre. Foi quando lembrei ter visto no Facebook a notificação de seu aniversário. E, meio envergonhado, aproveitei pra lhe dar os parabéns atrasado. Eu não sabia que aquela seria a ultima vez que lhe encontraria nessa vida, deveria ter dado um grande abraço nela... Então.
Na sexta passada, ao receber a noticia do trágico acidente, logo procurei saber se tinha sido mesmo a Amélia que eu conhecia. E a Onides, vendo minha aflição, logo deu um jeito de conseguir e me mandar a foto que ilustra esse artigo. Infelizmente, era verdade. Mas...


Assim que vi a foto, enviada pelo Whatsapp, da Amélia sorrindo, à frente de um vale lindo por entre as altas montañas dos Andes, lenço colorido no pescoço, tive uma sensação estranha e, ao mesmo tempo familiar. A sensação de que ela, enfim, estava em casa. Me lembrei, então, daquele sonho antigo em que a Célia me esperava no início da ponte. Só então percebi como elas duas eram parecidas, a mesma santa mistura índia-andina-sertaneja. A partir dai passei a acreditar que as duas fazem parte dessa mesma tribo do Aquiri, senhora do vasto território desde a imensa floresta de fronteira até as mais altas montanhas. Uma tribo sagrada e muito antiga, cujas mulheres, tão sábias quanto guerreiras, irão nos guiar até lá, onde precisamos chegar.
E foi nisso que encontrei consolo pra minha própria dor. Espero ter sabedoria e correção suficientes pra voltar a encontrá-las um dia, como num sonho...

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Pra inicio de conversa


Faz quatro anos que encerrei a Coluna Miolo de Pote (http://colunamiolodepote.blogspot.com.br/), publicada semanalmente durante seis anos. O último artigo da coluna foi escrito durante a realização do I Fórum Setorial de Culturas Ayahuasqueiras, no Ciclu-Midã um dos centros religiosos do Alto Santo, como também é conhecido o Bairro Irineu Serra.
Coincidentemente, essa nova coluna começa logo após o encerramento da II Conferência Mundial da Ayahuasca. Circularidades da história... Nenhum acaso.
Inicialmente pretendo escrever uma série de artigos relacionados à “Ayahuasca, Daime, Cipó”, como diz a musica de nossa querida Keilah Diniz. Não apenas sobre a Conferência, mas sem perdê-la de vista. Depois, voltamos a outras histórias que o tempo nos solicitar...



Quem fala pela Ayahuasca...
Confesso que, durante esses últimos dias, na II Conferência Mundial da Ayahuasca, fiquei incomodado, em algumas situações, por estar usando o nome “Ayahuasca” para designar aquilo que há décadas chamamos aqui de “Daime”. Afinal, deixar de usar nossa própria denominação para adotar um nome dos “outros” pode ser perigoso e diluidor de nossa consciência histórica.
Entretanto, todas às vezes que fiquei aflito sossegava meu desassossego ao lembrar de quando, como e porque esse nome foi adotado pelos Daimistas acreanos. Segundo relatos que ouvi de pessoas que lá estiveram: já no início da primeira grande reunião feita entre adeptos das diferentes doutrinas surgidas aqui na Amazônia Ocidental, em 1991, ocorreram dificuldades de diálogo porque uns chamavam de Daime, outros de Vegetal, outros de Cipó, de Mariri e assim por diante. Como forma de resolver o impasse, se convencionou adotar o termo Ayahuasca por ser neutro em relação à realidade local.
Curiosamente, esse termo de origem andina, língua Quéchua, acabou se estendendo, mais recentemente, também ao mundo científico em suas muitas linguagens: humanas, da natureza, biomédicas, jurídicas, etc. Ou seja, “Ayahuasca” se tornou o nome comum quando usado entre os diferentes. Circularidades da história... Nenhum acaso. Mas, isso mostra como os “ayahuasqueiros” acreanos de 1991 conseguiram antecipar o que estava por vir.
Aliás, anteciparam muito mais que a necessidade de um nome genérico e comum a todos. A Conferência de 1991 teve um resultado extraordinário que também antecipou um dos principais desafios de nosso tempo e motivo de grandes embates na recente Conferência Mundial: quais princípios são imprescindíveis para garantir a preservação das culturas ayahuasqueiras e de suas espiritualidades diante das forças econômicas que pressionam permanentemente para tornar esse chá milenar um mero produto submetido às forças e regras do mercado global?
Nascia assim a “Carta de Princípios” (http://www.mestreirineu.org/liberdade_carta.htm) que, nas duas últimas décadas, serviu como balizamento ético e político para a conduta de boa parte dos centros religiosos originados dos ensinamentos dos Mestres Irineu, Daniel e Gabriel. Ou seja, muito da atual II Conferência Mundial girou em torno de debates e problemas que já eram encarados com coragem, determinação e profundidade aqui no Acre, há 25 anos.