quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Santa Maria da Liberdade... Abre as asas sobre nós*


1. Assim que ouvi essa história pela primeira vez, tive vontade de contá-la. Só não sabia que a vontade ia virar necessidade e que o fio dessa meada escondia uma tronqueira difícil de atravessar. Mas, já que estamos em meio de caminho, o jeito é seguir viagem...

Rio Envira, em Feijó.
 
2. Contam que I-uirá, o rio dos pássaros, foi um dos últimos a ser tomado dos índios, na tempestade do tempo da borracha. Os invasores já tinham se espalhado por todo canto, do Abunã ao Moa. Mas, pra tomar de conta do I-uriá tiveram que vir, ao mesmo tempo, peruanos pelo lado d’cima – desde as beiras do Ucayali, devastando aldeias e cauchais - e brasileiros vindos d’baixo, em barcos de fumaça que vomitavam gente cariú sem cessar, pros novos seringais. Mesmo assim, Huni Kuin, Kulina, Ashaninka, Shanenawa, todos, seguiram lutando contra esse pau d'água que nunca se acaba. E, ali estão ainda... Nas margens do longo caminho de água que continua a levar às cabeceiras, território dos últimos isolados da floresta que foi um dia... I-uriá, rio dos pássaros, rio Envira.
3. Subir esse rio nunca foi fácil. Depois de Porto Rubin, começa o alto rio, que segue pelos seringais Califórnia e Liberdade, de sete a cinco dias de motor, desde Feijó. Isso, hoje em dia. Imagine na época que subia no varejão. É longe...

Mapa de Masô, 1917
4. Contam que foi nesse seringal Liberdade que uma menina, por nome Maria, e seu irmão, Dico, viveram uma tragédia que resultou na morte de Maria. Uma história que, desde sempre, guarda muitos mistérios, tantas são as histórias diferentes que o povo conta.
5. Depois da morte de Maria, as pessoas de todo Envira, começaram a rogar por ela nos momentos de dificuldade e foram validos. Tantas, que nem dá de contar... Seringueiro flechado por brabo, na mata, que pediu à alma dela e, de repente, as flechas saíram de sua perna, o sangue engrossou, até chegar na colocação. Mulher cega que voltou a enxergar no momento em que avistou, lá no fim do estirão, o lugar do túmulo de Santa Maria do Liberdade. Tantas e tantas meninas nascidas e batizadas como Maria da Liberdade desde então, porque não teriam sobrevivido ao parto, sem sua intercessão, certeza. Fé, muita fé...
6. Tantos mistérios bonitos lá naquele lugar do seringal Liberdade: flores ao redor do túmulo sempre verdes, mesmo quando a seca queima tudo em volta; aquela samaúma bonita que fica, também, junto ao túmulo e onde, de vez em quando, se diz ver a Santa; um perfume forte e doce que se espalha desde a terra por todo aquele alto, a cavaleiro do rio, e enche o coração de quem sente; um lugar que traz paz a quantos por lá chegam, aflitos, em busca de auxílio. E mesmo quando vem a quebradeira dos barrancos, que toma conta do rio Envira todo período invernoso, e quebra tudo em redor, nada quebra no barranco do túmulo de Santa Maria da Liberdade. É o que conta o povo de lá. 

Capela/túmulo de Santa Maria da Liberdade - Site Cultural de Feijó

7. E a devoção à ela se espalhou rio abaixo e rios acimas, pelo Jurupari, Tarauacá, Muru, Juruá e mais. Ergueram um cruzeiro e uma capela em torno do túmulo de Maria. Primeiro de madeira e palha, anos depois de alvenaria, bonita. Diz que teve um homem grande que foi valido pela Santa numa grande aflição e deu à ela muito gado, que ficou por ali mesmo no campo em volta da capela e valeu muito a todo o povo daquelas beiras de rio e de floresta. Mas, isso eu só ouvi dizer, não sei se foi. O que eu sei mesmo é que teve um tempo em que se juntaram e construíram, lá por trás da capela, uma hospedaria pra abrigar o povo, que vinha de tudo quanto era canto, pra pagar suas promessas, ou pedir bênçãos, à Santa Maria da Liberdade. Foi muita gente que fez, cada um com o pouco que podia, mas fez. História bonita: tem tempo isso.
8. Mas, quando tudo parece clarear é que, o balseiro de histórias, torna a ficar mais cerrado. Porque muita gente conta, também, que o corpo de Maria ficou incorrupto. Mesmo tendo passado muito tempo de sua morte. Aliás, têm várias narrativas que lembram que as roupas dela também estavam intactas, outras acrescentam as flores vivinhas que estavam sobre ela e tem, ainda, a tal fita, que vai aparecer também na cena da morte de Maria em certas narrativas. Mas, sobre isso, as versões variam tanto que não dá pra saber ainda em que circunstâncias se depararam com o “corpo santo”.
9. E, é exatamente nesse ponto, que entra em cena a Igreja, já que o povo afirma que o corpo da Santa Maria da Liberdade foi levado, em segredo, pra Roma. Curiosamente, muitas das narrativas que ouvi, sobre isso, são tão ricas em detalhes e afirmações testemunhais que aumentam a desconfiança de que realmente algum sacerdote católico tenha exumado e levado o corpo dela. Se pra Roma ou pra Alemanha, se por ordens superiores ou não, com quais intenções e objetivos, não sei. Essas já são outras histórias, mais difíceis de confirmar. Sei que as narrativas falaram de um Monsenhor, de Bispos, de soldados levando o corpo. E três, ou quatro, pessoas falaram de um tal padre Fritz, Fites, José Fliutes...
10. Nesse tempo o “governo espiritual” de todos os rios do alto Juruá pertencia aos padres espiritanos da província francesa que, entre 1900 e 1930, ficavam baseados nas cidades de Cruzeiro do Sul e Tarauacá e, mais tarde, também na vila Feijó. A partir das cidades, os padres de diferentes nacionalidades, subiam os rios, fazendo as desobrigas, celebrando os sacramentos e cobrando o cumprimento das leis e taxas da Igreja, num tempo em que sacerdotes católicos tinham enorme influencia e poder na sociedade. E, vejam só, que coincidência! Entre esses espiritanos, havia mesmo um Monsenhor Miguel Barrat e... o padre José Victor Fritsch. 

Livro de Batismos, desobriga de 1930
 

11. O fato do padre Fritsch ter atuado como pároco nomeado no Tarauacá, que abrangia também o Envira e os outros rios, entre 1918 e 1934, não significa que o “padre José Fliutes” retirou mesmo o “corpo santo” de Maria, “na era de 30”, como afirmou, categoricamente Seu M., o rezador nascido no seringal Califórnia, vizinho do Liberdade, em 27. Mas, que aumenta muito a possibilidade, parece não haver dúvida... Ainda mais se levarmos em conta que, Seu M. cresceu e viveu a vida toda nesse trecho de rio e deu informações muito precisas sobre os “homens de verdade” dos seringais do Envira. Tão precisas que foi possível confirmar muitas delas em mapas e fontes históricas. Absurda a memória e alegria desse homem de noventa anos... Benza Deus!
12. Penso que está claro que não estou afirmando que essas duas histórias: a do corpo incorrupto de Maria e a de sua exumação, e envio para fora do Acre, pela Igreja, sejam reais. Mas... Acredito que é preciso saber mais a esse respeito. Por respeito, até...
13. De um jeito ou de outro, a devoção à Santa Maria do Liberdade seguiu forte entre o povo das beiras dos rios e da matas. Nas cidades mesmo, Feijó e Tarauacá, ficou sempre mais velada a conversa sobre aquela santa cheia de segredos e mistérios e milagres.
14. Chegaram os anos 70 e tudo mudou no Acre. O tempo da borracha estava acabado de vez e a vida nos rios nunca mais seria a mesma. A chegada de novos personagens, a maioria sulistas, só confirmava as mudanças. Entre estes, chegou Padre Alberto, marista, outra ordem de origem francesa. Aliás, o primeiro e único sacerdote a ter sido ordenado padre em Feijó, até hoje. E, de alguma maneira que ainda não consegui saber, ele se envolveu com a devoção popular à Santa Maria da Liberdade e decidiu construir uma capela dedicada a ela na cidade, em Feijó. Origem de outra infinidade de histórias... E haja pausada pra atravessar tra’veiz. 

Igreja de Maria da Liberdade - Site Cultural de Feijó

15. A capela de padre Alberto se tornou uma igreja, que se tornou uma paróquia. Muitas mulheres da cidade, avós e mães e filhas, que já cantavam suas orações e benditos em louvor de Santa Maria da Liberdade, há tempos, passaram a rezar lá. Muitas que continuavam a subir o Envira todos os anos, pra cumprir sua devoção à Santa, agora também podiam pagar suas promessas na cidade. Então surgiu um quadro. Uma imagem de Santa Maria da Liberdade. Uma menina de mãos espalmadas, em cima do mundo, emanando luz, com uma cruz por detrás. Uma imagem que ainda está na Igreja da cidade, onde recebe os pedidos e preces à Santa. Mas, também está espalhada, em tamanho menor, em muitas casas das senhoras de Feijó. E está posta, como tinha que ser, na capela/túmulo de Maria no Liberdade. 

16. Perguntando sobre a imagem, só ouvi duas meias frases: “quem pintou, acho que foi a irmã do Padre Alberto” e “parece que é inspirada numa santa de Paris”. Sobre a primeira meia frase, só temos a assinatura, Maria Humih SND, no quadro e a informação de que ela era, na verdade, uma Irmã de Notre Dame, uma ordem de raízes francesa e alemã que chegou no Acre, a partir dos anos 70, junto com os maristas. Mas, sobre a segunda questão, encontrei um pouco mais.
17. A santa de Paris parece se referir à Santa Catarina Labouré que, em 1830, teve um encontro com a Virgem Maria, como Nossa Senhora da Conceição. Nesse encontro Catarina foi avisada de tempos difíceis que iriam se abater sobre a França e que só o poder da fé poderia enfrentar e vencer. Surgiu, das revelações de Maria à Catarina, a medalha milagrosa de Maria, que se espalhou pelo mundo inteiro, como uma bênção dela para vencer as dificuldades. 

 
Visão de Catarina, 27 de nov. 1830

18. A imagem que inspirou o quadro de Feijó, na verdade, não retrata a santa de Paris, Catarina, mas sim Santa Maria como foi vista por Catarina: sobre o mundo, com raios de luz saindo das mãos espalmadas. A diferença é que Santa Maria da Liberdade foi pintada como uma menina e tem uma cruz atrás de si o que remete de novo pra imagem da medalha milagrosa. A imagem da medalha foi vista, em todos os seus detalhes por Catarina. E a medalha tem N.S. da Conceição de um lado e a Cruz do outro. Portanto, no quadro de Santa Maria da Liberdade vemos a frente e o verso da medalha milagrosa ao mesmo tempo, como se ela fosse translucida, com Maria à frente da cruz.


19. Mas, o que me pareceu ainda mais curioso, foi o fato de que, 57 anos depois da morte de Santa Catarina Labouré, seu corpo foi retirado para ser transferido para a igreja onde ela havia tido a visão de Maria e ele ainda estava incorrupto e flexível, com um grau de conservação espantoso. E, continua assim até hoje, a julgar pelas imagens e informações da internet. Ou seja, a meia frase que me foi dita poderia significar que a imagem de Santa Maria da Liberdade foi inspirada na imagem da Virgem Maria vista pela Santa de Paris, que tem o corpo incorrupto, como nossa Santa Maria da Liberdade. Será que Padre Alberto e a irmã Maria sabiam de algo, além do que pudemos saber, sobre o “corpo santo” de nossa Maria do Liberdade, por isso a referência na imagem? Não sei... Mas... 

Corpo incorrupto e flexível de Santa Catarina Labouré

20. As romarias de barco até o Liberdade se tornaram grandes. E, mesmo com a morte de padre Alberto, em 1983, a igreja de Feijó continuou crescendo. Hoje é bonita, bem construída e mantida. A única coisa que mudou foi que passou a ser chamada de Paróquia Comunidade Maria da Liberdade.
21. A bem da verdade, para a fé do povo, tanto faz se o corpo de Maria está ou não em seu túmulo/capela, no Liberdade do Alto Envira, ou em Roma. No dizer dos que têm fé nela: “podem ter levado o corpo, mas não levaram o poder de Deus!” Talvez seja por isso que os devotos consideram que a terra do túmulo de Santa Maria da Liberdade é milagrosa. 

Interior da Igreja Maria da Liberdade, Feijó, 2017
22. Desde o inicio dessa história toda, me atraiu a origem, a ponta do fio da meada. Quem foram Maria e Dico? Eram só os dois? Não tinham outros irmãos? Como eles viviam? É possível ainda saber o que aconteceu? E o Dico, depois de tudo? E eu quis saber sobre a vida deles porque me pareceu que, na medida em que vamos nos envolvendo na história da Santa Maria do Liberdade, vamos apagando, mesmo sem querer, a história de uma menina chamada Maria e seu irmão Dico. O que seria injusto.
23. Por isso, não consegui esquecer a história dos dois, singelo olho d’água d’onde brolhou um igarapé cristalino, rico de histórias sagradas e sentimentos antigos. Dois jovens comuns. Apenas mais dois que teriam passado por nosso mundo, feroz e injusto, ontem como hoje, de maneira invisível e anônima, como quase todos nós, não fosse terem vivido uma história tão extraordinária e poderosa, daquelas que parece poder tocar a eternidade, que deu origem a tantas histórias, mistérios e milagres. Tantas, que é difícil demais... parar de contar.
24. Muita gente que nunca tinha me visto mais magro, ajudou no que podia. Me receberam em suas casas, foram atrás, me confiaram suas lembranças, muitas vezes amargas e dolorosas, inclusive. Uma galera que tá lendo e acompanhando tudo, me mandou um monte de novas histórias e ajudou com opiniões. O Alexandre me mandou o antigo Bendito à Santa Maria da Liberdade de Mestre Antônio Pedro, que também é do Alto Envira e eu não sabia, num momento muito importante pra não esmorecer...
25. Foram muitos mesmo os que se meteram a me ajudar de alguma maneira e estão, na verdade, escrevendo essa história junto comigo... Em minha casa, em Rio Branco, em Feijó, no Rio, fora do Brasil. Enfim, mais um dos mistérios de Santa Maria da Liberdade... Ela que sempre fez parte da história de muitos, toma os que dela se aproximam, e está sendo conhecida e contada por muitos juntos, mais uma vez. Até musica já virou, pra poder contar outras versões ainda, graças à beleza dos meninos euphônicos do Tarauacá. Só posso agradecer. Essa história foi contada por todos nós, vocês sabem. Agora, essa história já faz parte de mim, de nós, de uma maneira muito profunda, por tudo de bonito e de importante que encontramos subindo esse rio caudaloso e farto de histórias. Não conhecia o Envira, ainda.
26. Uma história rara... Não é pra ser esquecida. É como prece, precisa ser falada, dita, contada, cantada. E, como vocês podem ver, falta muito ainda pra entender e pra contar... Mas, sempre chega a hora de voltar... Mesmo nas viagens mais difíceis ou longínquas, em que nos jogamos de corpo e alma, sempre chega a hora de voltar pra casa... Graças a Deus!!! Sinto que vou continuar a pensar e rezar por Santa Maria da Liberdade, sempre, e, toda vez, que for de necessidade...
27. msg do Lucas - 06 de janeiro, 02 de fevereiro de 2017 - postado. 

Foto: Sergio Vale

* Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós. Versos do Bendito à Santa Maria da Liberdade de Mestre Antônio Pedro e do Hino à Proclamação da República 

sábado, 28 de janeiro de 2017

Muitas Marias, uma Santa e a tal Liberdade... IV


Já tinha ficado claro pra mim que não ia conseguir, por agora, ir até a capela/túmulo da Santa Maria da Liberdade, rio Envira acima. O problema é que, sem sair da cidade, ia ser difícil falar com o povo da beira do rio, incluindo os índios. Mas, pra minha surpresa, versões indígenas apareceram nos comentários das postagens que eu já estava fazendo. 


R... contou que viu “Uma linda imagem dela, grande, pintada num altar na Terra Indígena Kaxinauá do Rio Humaitá, lá longe. Desde então passei a ter devoção por ela. Até porque a liberdade é um dos dons que a Virgem Maria nos dá. E me senti valida por Ela!”
Já P..., mesmo longe do Brasil, não sossegou enquanto não me mandou suas anotações sobre a capela/túmulo do Liberdade. “Um Shanenawa e um Kulina me contaram que ela tinha 9 anos quando o irmão a matou. Ela se tornou santa porque sumiu do túmulo. A mãe, e outras pessoas, viram ela próxima de uma árvore que tem lá na capela. Aí, foram revirar o túmulo, mas ela não estava mais lá. Por isso eles pegam a terra que tem no túmulo e acreditam que seja milagrosa.”
Essa ultima versão era a mais diferente de todas até aqui. Nela, Maria era apenas uma menina, o corpo sumiu transmutado em espirito e, assim, não pode ter sido levado pra Roma. Fiquei imaginando quantas outras versões devem ser contadas no Alto Envira. Em compensação, logo encontrei pessoas que moraram lá perto do Liberdade, décadas atrás, e as versões ficaram ainda mais quentes.
Dona F., nascida em 1931, morou no Envira e lá... “Conheci o irmão da Maria, que matou ela, conheci... Ele morava com uma cumadre minha, filha dele. Eu morava no Santa Rosa e ele no Santo Antônio, abaixo do Liberdade. Mas, ele não queria que triscasse no nome dela.
O que me contaram foi que ela era moça e já tava namorando. A mãe dela tinha ido pro igarapé lavar roupa. Maria estava em casa arrumando a mala, enrolando uma fita na mão pra guardar. Ai o irmão subiu no ‘sóti’ e lá de cima disse: Maria você vai casar com fulano? Ai ela disse: Vou... num sei. Acho q vou...Vou! Ai, ele atirou lá de cima com a besta (armadilha de caça) e acertou bem no peito dela. A mãe, quando ouviu o tiro, veio correndo e ainda alcançou ela viva... Foi quando Maria disse que não queria vingança... e morreu. Isso ai é verdade!
Depois os padres pegaram o corpo dela. O padre ‘Flito’ levou. Ninguém sabe se levou pra Roma, sabe que levaram...”


No domingo de manhã, na Igreja da Maria da Liberdade, em Feijó, conheci uma pessoa muito especial: Seu M., rezador respeitado nos rios e na cidade, nasceu em 1927, no Seringal Califórnia, vizinho ao Liberdade, e estava fazendo 90 anos nesse mesmo dia, 15 de janeiro, com uma memória absurdamente clara. Apesar do aniversário ser dele, quem ganhou um grande presente fui eu.
Conheci o Sr. Luís Romualdo que conheceu a santa, conheceu a mãe, o pai e o noivo dela. Ele me contou que o juiz de paz Chico Maciel vinha subindo o rio pra fazer o casamento de Maria com o dono do seringal Liberdade, um tal de Parintins. O pessoal já estava soltando foguetes na chegada do juiz. Maria estava em casa, sentada na cabeceira da mesa. E tinha um irmão, por nome Dico, que falou pra ela: Maria, tu não casa com fulano! Ai ela perguntou: Porque mano? E ele: Porque eu te mato! Ai ele pegou o rifle que todos eram acostumados a bater catolé (atirar sem munição) uns com os outros, brincando, há quantos anos. Mas, quando apertou o dedo. Teeeei!! No peito dela. Ai, Maria tombou por ali, mas aguentou, se escorou na mesa e deu aquele desmaio.
Ai prenderam ele. Mas, ela pediu pelo amor de Deus, que não fizesse nada com ele e ai soltaram. Acontece que ela ficou com o coração humilde, friiinho, de paz, amor e caridade. O povo ficou tudo neutro, ninguém ficou contra. Mas, diz que o Dico passou uma porção de tempo assim, meio desorientado dos sentidos. Acho que o pai dela já tinha morrido, mas a mãe estava lá e diz que Maria contou um segredo pra ela, mas não era pra contar pra ninguém. E a mãe dela nunca contou mesmo, levou com ela.
Antes disso, todo assunto que Maria tinha, era um assunto assim... diferente de pessoalmente, do nosso natural, entende?. E ela sempre tinha um gesto diferente. Tudo dela já era com aquela diferença. Tudo... Já se comportando assim como no caminho da salvação. E, até hoje, ela faz milagres com o poder de Deus.
Tinha uns homens de verdade no Envira (cita o nome deles e de seus seringais). Todos eles contavam uma historia só: aconteceu por uma brincadeira...
Ai fizeram o sepulcro dela. E o povo começou a fazer promessa. Ela era bem acontecida. A história foi espalhando. Ai, na era de 30, chegou um padre lá em Califórnia. Ele foi no túmulo e tirou ela. Fizeram aquela caixa e colocaram o corpo santo. O corpo tava inteirinho, inteirinho, inteirinho, não faltava ninguém. Os vestes dela tudo perfeitinho. Fita que enfeitaram ela, assim arroxeadinha, tava do mesmo jeitinho, novinha, novinha, novinha, não pegou sujo nenhum. Só pra quem ele abriu foi pra Dona Inês. Ele abriu uma coisinha pra ela ver, ai fechou. Foi deixar em Roma. Era um capuchinho, já velhinho, italiano. Mas, não resistiu à volta, morreu em meio de viagem. Chamava Padre José Fliutes e foi quem me batizou. Mas, o povo continuou se valendo da alma dela, da Santa.”
A essa altura do campeonato eu já tinha reunido mais de vinte diferentes versões. Ficou claro, então, que as diversas versões da morte de Maria da Liberdade também são uma maneira de retratar as violências que sempre foram impostas às Marias dos seringais: abusos, casamentos forçados, acidentes familiares, estupro, assassinato, dramas e tragédias seculares que perduram até hoje. Apenas mais uma Maria que deveria ter sido esquecida, como tantas e tantas outras, não tivesse ela se tornado uma alma milagrosa, uma Santa a valer todas as Marias desde então.
Mas, nesse ponto, comecei a perceber também que muitas dessas diferentes versões eram, na verdade, partes de uma mesma história. Só me faltava juntar os pedaços...